- Cotidiano em Crônicas
Antipatia
Atualizado: 20 de Nov de 2020
Chama-se de antipatia gratuita a aversão que alguém sente por outra pessoa sem nenhum motivo aparente. E era exatamente isso que existia entre aquelas duas mães. Detestaram-se assim que se viram.
- Não gosto do jeito dela – dizia uma.
- Parece que tem o rei na barriga – retrucava a outra.
Nunca trocaram uma palavra sequer e não havia nenhum argumento racional que pudesse explicar a razão daquela antipatia.
Viram-se pela primeira vez no clube. Tinham filhos da mesma idade e moravam no mesmo bairro. E mesmo assim julgavam não ter nada em comum. A não ser a tal antipatia gratuita.
Quis o destino que os filhos, ainda muito pequenos, se tornassem amigos. Brincavam na piscina do clube, estudavam no mesmo colégio e participavam do mesmo grupo de amigos.
Nada disso, contudo, serviu para aproximar as mães. Ao contrário, aumentou a aversão. Ninguém entendia. E a ausência de lógica que justificasse a antipatia colaborava para que surgissem rumores de que a inimizade vinha de longa data, envolvendo supostas maldades cometidas de um lado e outro. Tudo sem nexo. Elas simplesmente não iam mesmo uma com a cara da outra.
A amizade dos filhos crescia na mesma medida que aumentava a aversão entre as mães. Os garotos estavam sempre juntos e chegaram até mesmo a namorar duas meninas muito amigas.
Na formatura dos filhos, as mães sentaram-se em mesas bem distantes, embora vez ou outra tentassem espiar o que cada uma estava fazendo.
Os garotos foram fazer faculdade em cidades diferentes, prometendo que a amizade não seria abalada pela distância.
Mas, com o passar dos anos, fizeram novos amigos, ocuparam o tempo com o estudo e outras atividades e a promessa da adolescência não foi cumprida. Deixaram de ser amigos para ser apenas conhecidos de infância.
Sem a presença dos filhos para buscar no colégio ou levar a uma festa, as mães também deixaram de se encontrar. Pareciam ter se esquecido uma da outra.
Até o dia em que se esbarraram em um supermercado. Literalmente, esbarraram-se. Corredor estreito, carrinhos de compras chocando-se e um polido pedido de desculpas de ambos os lados.
Passado o constrangimento inicial, sentiram a necessidade, em nome da boa educação, de perguntar sobre o filho uma da outra.
- Ah, meu filho vem muito pouco para cá. Está fazendo estágio agora e parece que eles crescem e esquecem da gente.
- É verdade. O meu também quase nunca vem visitar e quando vem, passa a maior parte do tempo com os amigos.
Ambas suspiraram diante das agruras da maternidade.
- Até que a voz dela não é tão esganiçada como eu achava – pensava uma.
- Ela até que não é tão falsa como parecia – refletia a outra.
Terminaram as compras juntas, deixaram o supermercado juntas e quase num impulso marcaram um café para o dia seguinte.
Descobriram que estavam lendo o mesmo livro, que têm a mesma opinião sobre política e que até votaram no mesmo candidato.
Hoje são amigas inseparáveis, o que deixou muito confusos os amigos, mas estes também celebraram o fim daquela desavença sem sentido. Sobre a antiga antipatia gratuita jamais disseram uma só palavra.
Conversam sobre tudo, mas principalmente sobre os filhos ingratos que nunca ligam e nem aparecem nos feriados.
